quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

tratar bem o ano que é novo

Vou tratar bem o ano que me oferece o virar do calendário. 
Ofereço-lhe sementes para colher pés de margaridas.
Para dar aos que navegam no mar comum, em busca de terra firme,
nas marés do riso, das lágrimas, nos silêncios, nas distâncias e sempre sempre no bolsinho do meu coração vivem.
Para cada ano desejo que a dança da alegria se torne a norma.
Feliz sementeira e colheita em 2016. As de 2015 já comi.


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Não, não vou esperar

Não, não vou esperar que chegue o dia em que tudo vai ficar bem, o dia que vou ter as contas todas pagas, a casa cheia de quadros e almofadas a condizer, o dia em que todos os livros se encaixarem com perfeição nos lugares das estantes, não vou esperar a alma se conformar sem que mais lama a venha tapar, e a segurança seja o meu lema. 
Esse dia não chega, nem cabe na estrada que cubro de histórias. Esse dia não cabe nem chega no corpo pequeno que me acolhe, não cabe no tempoque me sobra, na idade que me abandona, na casa pequena que me cobre o corpo. Nela e nele me aconchego porque as suas paredes pequenas me protegem e são imensas para conter a minha imaginação. Não, não vou esperar o dia certo chegar. Não, não vou esperar o dia final para começar. No escuro vazio do navio negreiro que me pariu em solidão, vou já hoje expandir o meu clarão, enquanto tudo ainda nem começou. Já não tenho tempo para me esquecer de ouvir o mar. O choro da alegria. O calor de uma gargalhada. O gemido do amor. Vou já continuar enquanto sou criança. Nem vou precisar de dormir para sonhar.
Pé ante pé, vou ainda hoje, enquanto está tudo trocado. Tudo atrasado. Tudo vestido. Tudo incerto. Tudo inseguro. Tudo errado.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Mini conto, E a vida é...


Foi muito jovem. Tornou-se ainda mais jovem num corpo sem esperança. Testemunhou e criou várias vidas. Foram muitas as aventuras. As glórias, os aplausos, as lágrimas de alegria. Muitas viagens. Muitas dores derramadas na tristeza que brotava dos olhos. Amores que nela se esculpiram e gravados ficaram. Depois de cada momento, um abraço e um coração de novo reunido, depois de em mil pedaços se ter partido. Quando abraçou o último amor.
Recebeu um desfiar sem conta de despedidas. Muitas imagens que viu desabrochar numa flor. A sua flor.
Os erros, tantos quantos gotas de chuva num ribeiro, foram-se transformando em memórias. O sol aquecia-os com a sua luz e deixava-os ser... apenas histórias. Caminhos destravados foram percorridos, talentos inatos desconhecidos que um dia livres, abriam caminhos outrora trancados.
Agora, bastava-lhe a simplicidade de se embrulhar na manta e ver a vida se desembrulhar. Tudo era precioso. Deixava-se levar. Retratar com a imaginação a beleza de uma lua cheia, fumar um cigarro ao anoitecer observando os ninhos das cegonhas, perder-se no infinito da imagem de um fogo que se levanta, numa louca espiral em dança. Agora, bastava-lhe rir com amor, com os loucos que amava, até ficar com a pele da barriga arrepanhada e os olhos a lagrimar.
Restava-lhe esperar o momento de se lhe reunir, sem pressa. Nos sonhos davam-se as mãos, com a esperança do reencontro. Adivinhava a excitação e tremia.
E no mais solene momento da vida, nas asas do último compasso da sua melodia, ele, agarrou-lhe na mão e ela, deixou-se nos seus braços voar.


Mini conto E... que o amor nos salve...

Tinha uma vida equilibrada. Com a pessoa certa. Podia dizer que sabia o que era a felicidade. A partir do momento em que ela entrou,desarrumou todas as gavetas, mexeu em todos os cantos, despiu-o, desabotoou-lhe os botões da casa que regulava o balanço do ser. Entranhara-se na corrente sanguínea. Eram magia plasmada nas mãos um do outro. Dançavam enquanto as mãos se conheciam, os pés se acariciavam e no peito aconteciam. Para sempre a dança de ambos. 
O equilíbrio era um bem que ambos tinham perdido. Desde então, ela tornara-se o que ele nunca tinha tido. Tudo. O equilíbrio que lhe restava era o que lhe vinha da sua atenção. Era a pessoa errada que ele tinha. E a única certa. Silenciosamente transformadora como a água em terra seca.
Desde que com ela dançava era todo felicidade.

Conselhos de Isabel Allende para quem quer escrever

Andava apreensiva. Por aqueles que dizem: "vem por aqui", "deves ir por ali" ou "nem devias ir"...
Até que ouvi e li conversas de escritores que admiro. Como a que deixo aqui de Isabel Allende.
Mas antes deixem-me contar uma história, a minha.
Os que como eu fazem arte com o coração (os heartists), são frágeis, sensíveis, vulneráveis mas também muito corajosos quando não se deixam influenciar por factores negativos externos.
É uma linha ténue e frágil que lembra a espada de Dâmocles, sobre a insegurança vinda de um poder. Este, o de contar histórias que sejam importadas para dentro de um leitor. Em prosa ou poesia.
Há quase 50 anos que leio. Muito e de tudo. Selecciono os autores que mais me emocionam. É um hábito que mantenho. Por puro deleite.
Desde cedo em criança, costumava refugiar-me nesse mundo e nela consumia o tempo. Era totalmente absorvida pelas histórias. Ninguém me via, ninguém conseguia comunicar comigo. Se desaparecia sabiam que eu só podia ter fugido com um livro.
Comecei a escrever seriamente, sobre tudo o que me inspira, há muito menos tempo. Depois de ganhar alguma confiança e de ler muito.
Hoje esta sabedoria vem-me do coração: mesmo que fosse uma sem abrigo, teria este permanente estágio não remunerado- a escrita - e apareceria ao trabalho diária e intensamente, para contar histórias.
Porque é a minha compulsão, o meu ópio, a minha vertigem, a adicção que eu fumo, bebo, como e durmo.
Mas ainda estou a ganhar confiança e chão.
Escrevo o que a inspiração me dita. É o meu treino diário. Posso não vender livros, não ganhar dinheiro com a literatura, mas sei que uma força maior me impulsiona que é a de continuar a escrever.
Imagino que partilhe este modo de ser com todos os que fazem da arte da escrita a sua fonte de nutrição das suas vidas.
Ou qualquer outra arte que venha de lugares insondáveis.
Por maiores que sejam os problemas, por maiores que sejam as críticas negativas, por maior que seja a falta de apoio de alguma forma, quem escreve, sabe que não pode deixar de o fazer.
A qualquer hora do dia ou da noite a porta está aberta para receber a dona da casa, a dona inspiração, que se senta, instala confortavelmente e dita as regras.
E eu, visita, obedeço-lhe.
Um dia, quem sabe, terei mais alguns livros.
Agora estou em fase de testes e ensaios. Uma dia posso ter peças prontas a apresentar. Lançar a minha nave e caminhar na lua.
Não me preocupo. Apenas me preocupo em escrever os resultados das visitas da minha dona. Acompanho-a pelos caminhos por onde me conduz.
Preocupo-me sim, em agradecer ao grupo dos poucos que vão acompanhando os ensaios, os mais calados que observam sentados no lado onde as luzes do teatro não incidem e, os que vão dando uns aplausos quentes que inundam de certezas a minha dona, a dona inspiração.
Por cada aplauso, ela tem mais confiança para se fazer presente uma e outra vez, e, afirmar com uma vénia : sei que quero ir por aí.

A todos os autores/escritores e leitores que um dia queiram escrever, deixo estes conselhos de Isabel Allende que construiu personagens belíssimos, de uma riqueza única, tem histórias absorventes e é uma das autoras que mais me emociona.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Despedida

Entre malas com excesso de bagagem, vento e música, embrulho esta história que acabo de compor,( baseada em vidas de verdade) e levo na minha mala. Porque as histórias verdadeiras são as mais belas. Ofereço aos suspeitos do costume. A tribU. A maravilhosa pintura que a acompanha vem do Sidney Cerqueira
Feitiço
Partiu no porão do navio. Com grilhões nos pés amarrada ao banco de madeira. Grávida de um terceiro. Com dois filhos pequenos ao seu lado.
-Antes assim,pensava Mel. Vou ter com o indiano,o amor da minha vida.Sou metade de um coração por causa do seu amor. A outra metade é a saudade que ele deixou ficar.
O barco sulcava violentamente as águas atormentadas, como a sua alma e o seu coração.Quando todos vomitavam quase perdiam a vida.
O barco rumava entre Cabo-Verde e São Tomé levando escravos para as roças de cacau.As crianças eram também obrigadas a fazer uma jornada igual aos seus pais.
O indiano não era indiano apenas parecia indiano. Caboverdiano, lindo, de cabelos negros e lisos e olhos azeitona. Todas as mulheres por ele suspiravam. Julio de seu nome.
Julio e Mel apaixonaram-se no momento em que as suas almas se reconheceram.
Mel acreditava que assim era. Agora o colono levava-o para longe da sua ilha, para outra bem distante.
Tanto tinha lutado que preferia ser escrava nas roças que ficar sem a proximidade do cheiro, do olhar, dos beijos quentes do seu indiano que não era indiano mas caboverdiano.
Mais dois filhos nasceram na roça. Todos trabalhavam jornadas duras e suadas.
A terra santomense recebia o sal das lágrimas e do suor, temperando com ele a fertilidade do cacau amargo que dela despontava.
Mel a estrangeira, desde o dia que pisara a terra, era odiada pelas outras mulheres locais. Todas queriam o belo Julio.
Fizeram-lhe um feitiço para a matar. Assim que ela morresse, tomariam conta dos pequenos e do belo e vigoroso homem caboverdiano que parecia um indiano mas que na negrura dos seus olhos apenas via luz nos olhos cor de avelã da sua doce Mel.
Mel ficou doente. Caiu na esteira com febres altas, talvez as febres dos mosquitos, talvez feitiço.
Julio não podia estar com ela, trabalhava sem descanso. Era um dos melhores escravos da roça.
-Pai pede para eu ficar ao lado da mãe a cuidar da mãe,pediu o filho mais velho, Manuel. Julio olhou o filho e viu-lhe as lágrimas que escorriam no rosto sujo. Julio sabia que só este filho poderia dar vida à mulher que o fizera nascer.
Em pouco tempo Manuel era autorizado a ir para junto da sua mãe. Manuel, o mais velho, de sete anos, inteligente como poucos sabia ler e escrever e entendia a língua da sensibilidade. Para tanto bastava estar presente e com o seu olhar avelã cristalino como o da sua mãe, trazia conforto.
-Este nosso filho não é deste mundo, dizia em surdina Mel deitada com a cabeça apoiada no peito de Julio.
Manuel entrou na casa de pau a pique construída pelo pai e olhou a sua mãe. Ali estava deitada de lado, respirando pesadamente entre gemidos. Esfregou-lhe os pés. Afagou-lhe a fronte. Deitou-se na esteira ao seu lado abraçando-a pelas costas e ficou em sossego. Adormecido.
Manuel não voltou a acordar no mundo que nem sempre ama os vivos. Foi para aquele de onde veio, no útero de sua mãe Mel.
Diz quem viu que o feitiço passou pelas costas de Mel para o coração de Manuel e este fez parar.
Julio cansado, com a doença da tristeza juntou-se a Manuel, quando a folha da bananeira ficou verde, pronta a deixar rebentar o fruto.
Com oito filhos, Mel recuperou da dor da vida, e, feita de coragem regressou à sua ilha em Cabo-Verde. Cuidou da vida de todos os seus filhos, metade seus metade do seu amor Julio, com o mesmo desvelo e amor de sempre. Como mel.
Feita metade de um coração por causa do seu amor por eles. A outra metade feita da saudade que Julio e Manuel deixaram ficar.
Em São Tomé, Mel, deixou o feitiço enterrado.


Para este quadro, Despedida, de Sidney Cerqueira escrevi um poema. Visitem a nossa exposição conjunta no Centro Cultural da Malaposta. Ele pinta eu poemo-lhe as pinturas

tenta não me esquecer
encontras-me do outro lado do mar
quando as ondas os teus pés beijarem
são os meus que vão trazer lágrimas
para os teus lábios salgar
tenta não me perder
quando vires o sol desaparecer
do outro lado acontece um sublime amanhecer
quando em segredo te acordar
tenta não me esquecer
quando a lua te acariciar
sou eu vestida de nostalgia
para em ti me procurar
tenta te lembrar
que de noite ou de dia
te vou sempre encontrar
para que nunca sejas capaz de me esquecer








domingo, 9 de agosto de 2015

“Agimos como mortais no que diz respeito aos nossos medos e agimos como imortais no que diz respeito aos nossos desejos”. Séneca

Em memória de Adalberto Gourgel, homem generoso na luta pelos direitos dos albinos, grande e jovem fotógrafo angolano.
A vida dele,curta, tão intensa quanto importante mostrou um talento absoluto num ser humano imperfeito e tão cheio de virtudes.
Cumpriu certamente muitos dos seus desejos e deixou as suas sementes, o símbolo de uma vida plena. Como este seu retrato o é.
“Agimos como mortais no que diz respeito aos nossos medos e
agimos como imortais no que diz respeito aos nossos desejos”. Séneca

Tempo que não se demora
É o tempo contido na vida que deve ser gentilmente preservado, 
com amor usado
cuidadosamente acarinhado
Não os bens materiais
Não os meus medos
Em cada dia que passa gasto o meu corpo, a minha mente
Na rua o tempo passa por mim.
Se eu o perder não o volto a ter.
Eu sou vulnerável e frágil não o tempo.
O tempo esgota-se em mim.
Mas eu não sou inesgotável.
Posso sim esgotar o tempo sem do tempo me aproveitar.
A vida tem de começar no começo
sem esperar que venha um outro tempo.
Esse, o tempo de acabar.
Viver vai-me levar todo o tempo
que eu decida ocupar-me profunda e dedicadamente à vida.
Porque ela merece que eu empenhe todo o meu tempo.
O resto que eu não fizer
-os meus desejos-
é toda a existência a ir-se embora abraçada ao tempo.
E com ela perco o tempo no tempo da minha vida.
Como num destino planeado com o tempo
quero viver no tempo de cada momento
ser inevitavelmente o tempo usado e contido na vida
e não o tempo que tenho de vida.

sábado, 1 de agosto de 2015

"a walk in the wild side"

Estava só por amor. 
Num dia sem marca surgiu a minha amante. Aguardava-a.
Bateu à porta. Entrou, sentou-se e ocupou-me a sala, a mesa da cozinha.
O sofá. A mente. O espírito. A alma. O corpo.
Deixou a escova de dentes.
As roupas caídas pelo quarto. O perfume na pele do ar.
Hoje todos os espaços lhe pertencem. É o sal que condimenta os dias.
Alimenta-me.
Bordando ponto a ponto a festa da vida.
Bebe,come, fuma,dorme, alimenta-se sem eu lhe entender os vícios nem as manhas.
Fez-me divorciar de tudo e transformou-me num todo.
Fez-se manhã, regressou a noite.
Ficou.
O resto…
Não há resto.
Assenhorou-se, aprisionou-me e exigiu de mim que lhe fosse devotadamente inteira. Não mais saí sem a olhar.
Não mais fui metade.
Não mais vivi sem a possuir. Não vivo sem me certificar que me possui.
Vive dentro de mim.
Desaprendi dizer-lhe “agora não posso”.
Com alarde nas noites. Em recolhimento nas manhãs. Em loucura nas tardes.
Troca-me os risos de dia. Banha-me com rios de silêncio na noite.
Tece ninhos com cuidados de abelha num bem-me-quer.
Acorda-me mansamente com amor inspirado.
Renovado. Próspero.
Adormece-me lançando palavras que me beijam.
Iniciou-me num tempo novo.
Banhou-me de vida.
Como o sexo.
Encaixamos o côncavo no convexo.
Nas “linhas tortas escreve-se direita”.
Aguarda-me. Uns dias deixa-se ficar,não se precipita.
Outros... irrompe sem fôlego. Num longo amplexo.
Como velhos amantes sequiosos de se possuírem.
Sem precisarem de estar prontos. Bem fundo, prontos são.
Nunca foi difícil entrar nela nem nela estar.
Fico aqui. Pronta e eterna para ela.
Morro nela. Vivo para ela.
Não, não é perigoso com ela feliz ser.
Infeliz seria não a ter.
Nela envolvo todos os sentidos. Em permanência.
Sentamo-nos a tomar o café da manhã enquanto nos envolvemos com olhares. Em silêncio nos sentires.
Em casa estamos. Ficamos. Dentro uma da outra..
Esperançada vivi que ela me chegasse. O objecto da minha esperança veio. Tudo o resto pode falhar. Ela, sei porque veio do coração, não me falha.
Estou só. Com o coração preenchido de amor.
Numa infinita história de amor.
Numa entrelaçada festa de pijama e chinelos.
De dedos laçados.
Eu e ela. Como nos mais belos contos de amor puro.
Grata estou. Sem contabilidade.
Somamos ao infinito o nosso lar.
Sem resto.

O necessário

A vida é feita para ser consumida. Com ganas. A consumir toda, completa e inteira até soar o sino que indica a passagem.
Se te dessem um ano de vida o que farias?
É isso mesmo, faz de conta que sabes que só tens um ano.
Quando nascemos não sabemos. Não nos importamos e tantas vezes desperdiçamos.
Vezes demais. 
Por isso vou continuar a consumir vida. Mais e mais. Como se só me restasse mais um dia. Mais um ano. Até que a morte me encontre e recolha. Felizes para sempre.

"Eu uso o necessário, somente o necessário...por isso levo esta vida em paz"


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Para onde a arte me leva

Podemos viver dias no escuro mas dias há em que apenas vemos estrelas. Com arte
Chamo a estas minhas escrevinhaduras exercícios de palco até conseguir escrever peças. 
A prática será sempre a minha mestre.

A pintura é do Sidney Cerqueira e chama-se Bela

Quem sabe
no mundo espiritual
é o lugar onde nasce a arte 
onde é entregue como um presente
um mistério
um segredo
oferecido
a quem vai servir a vida,
com a vida contida na arte
com o propósito de lhe dar, a ela vida,
equilíbrio
com arte
em tempos onde é difícil seguir
uma estrada harmoniosa
de mim
ela,
no beco escuro
sem saída
é a rua onde tudo principia
para que eu
veja as estrelas
a arte
que desabrocha a primavera
ao despertar a minha alma quieta
com arte
diz-me para a seguir
e na vida que me demencia
prenhe de arte
resta-me dar-lhe vida


segunda-feira, 22 de junho de 2015

"Viajar é o teu destino"

Sim, claro! mas...

Não! Não digas mais mas! 
Encolhe, escolhe outras palavras, digo-me. Digo-te.

Muda-as, transforma-as. E vai. Viaja. Dentro ou fora de ti.
"Viajar é o teu destino".

Aos pontos cardeais alma, espírito e corpo foi-lhe dada uma missão:
-preparar uma pequena mala, entrar num vagão e seguir as várias estações e nelas se alimentar. Sem se deixar limitar por marcos geodésicos. Digo-me eu. Digo-te.
Faz paragens e conhece o vagão bar, o vagão restaurante, o vagão aventura. O vagão criatividade, o vagão cultura.
Pára e aprende no vagão compaixão, no vagão bondade, no vagão esperança, no vagão dos sonhos.
Senta-te e desfruta no vagão alegria, no vagão amizade, no vagão família, no vagão entusiasmo, no vagão encantamento, no vagão danceteria.
Desliza sem te fixares, quando encontrares o vagão maldade, o vagão medo, o vagão sofrimento, o vagão dor, no vagão vingança.
Fica com tempo no vagão experiência, no vagão conhecimento, no vagão espera, no vagão crescimento,no vagão da curiosidade, no vagão aventura, no vagão amor.
Por vezes muito rápido, outras alturas de marcha mais lenta e noutras ainda parado, o comboio vai avançando sem se esquecer do destino final. Com horário para o resgate. 
Digo-me. Digo-te.

Por isso não te atrases, não digas mas...
digo-me,digo-te.

Digo-me...
Ao longo das viagens necessito ir fazendo um diário de bordo, colocando os marcos das etapas. 
Saber em que ponto me encontro com a intenção de mim não me perder.
De ver a paisagem que em mim se adentra e me esculpe sabendo que os vagões não acabam, sempre envoltos em sombras e luz.

No último vagão, o de partida, ou de chegada quem saberá? apenas quererei a viagem saudar: sim, esta foi a viagem que sempre quis realizar. 
Estes foram os vagões que consegui visitar, onde quis aprender,onde quis estar,onde deveria estar, onde pude inteira ser.
Digo-me...
digo-te...


Basta!

Basta!
Janelas escancaradas num olhar de solidariedade sobre a Grécia. 
O povo escolheu um programa Humanitário e elegeu homens e mulheres que olhassem por eles. 
Que os olhasse como gente e não como manta de retalhos que podem ser transaccionados.
Esses que têm o poder em nome de quem os elegeu, e o estão a dignificar, em nome de quem já reafirmou nas ruas o seu apoio, sairão vencedores hoje na Europa. A outros chegará (tardiamente) o tempo de cair, mas chegará.
Têm o apoio de todos excepto de uma certa cambada dos quais me demarco...
Porque é do Renascimento do Humanismo que a Europa precisa.O mundo inteiro.
E se o povo português não se sentir parte da família grega,ao lado de um programa humanitário, certamente se ficará no lugar infernal da Odisseia de Homero. E é um caso de estudo...
Este é um momento de guerra pela paz e de tomar partido num dos  defesa da vida.
Sou capital transnacional. Sou cidadã multinacional. Sou grega

quinta-feira, 18 de junho de 2015

A chama que tempera o aço...

Dedicado a todos os que por tudo e por nada rompem e temperam as chamas

Nós e o amor...
o último é suficiente para o primeiro
um substantivo que enriquece um pronome

O amor é bem mais rico que nós 
é riqueza tamanha
que nos laça

mesmo que a pele se toque por um curto espaço de tempo 
para se reconhecer
que poucas sejam as palavras
para se entender
que curta seja a demora em nós
para se mostrar 
aos olhos que de dentro cuidadosamente nos observam
e se fazer ver

porém suficiente 
para se transformar 
substantivamente
em senhor pronome rico e poderoso,
dono de tudo quanto existe
em nós

Para ele nós criamos 
Por ele nós transformamos
para com ele sermos
seres felizes
com os seus raios rompemos o aço
com ele nos temperamos 
no momento que escolhemos para cada um de nós 
a curta passagem pela mortalidade
este lugar onde pronome e substantivo
se infinitam

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Mais uma viagem, mais um regresso

E é isto. Não é filosofia em saldo comprada no Bulhão.
Nem é a adesão ao Vem. A esse só adiro por pura subversão.
Nem tão pouco por prostituição,
que não me vendo nem por dinheiro nem por distracção.
Como patos que seguem a corrente da água do rio em beleza e elegância,
sob a superfície os seus pézinhos nadam incessantemente,
remam e direccionam a sua vida com força e determinação
A vida não a compreendo
nem ela me oferece explicações
desdenhosa ignorando as minhas questões
Mas se nela não pensar e apenas bater os pés e remar
deslizando sobre a água vou acontecendo na vida dela
e o seu véu vai destapando.
Há muito que decidi: se as empresas podem ser multinacionais, eu sou um passaporte com raízes em direcção a todos os pontos cardeais, por debaixo do chão que cobre as fronteiras dos homens.
Sou uma cidadã multinacional.
Agora vim.
Para o chão onde sempre começo e acabo. Nadando furiosa e incessantemente sob a água e deslizando sobre a vida.
Obrigada aos amigos novos que deixei (tot ziens).
Obrigada aos que me acolhem sempre oferecendo cama mesa e roupa lavada.
Vêmo-nos por aí ou quem sabe... em Antananarivo tongue emoticon
Vou, só para chatear, continuar a viver "to the point of tears".

domingo, 10 de maio de 2015

Insensatez vs lucidez

O mundo perdeu-me com a sua insensatez
por falta de mérito.
Ganhou-me a insanidade 
pela sua capacidade de me prender
e de me encontrar.
Mais louca me vou tornar
menos regras vou ter
menos certezas 
menos normal vou ser
mais acordada vou ficar
menos dormente 
e com mais loucura lhe vou responder.
Só vou aceitar conselhos da morte
dela não tenho as menores suspeitas
sei que é certa, fiável, segura
sabe da vida
da minha vida
de todas as vidas
sabe das minhas lágrimas
deixa-se por elas regar
quando 
vestida de sábia me diz: 
-a tua vida pertence-me!
e eu encolho-me...
de medo? 
feliz?
Não, só de pena de mim 
que estropiada fico
quando me leva uma das minhas células.
Que ninguém se julgue tão poderoso
capaz de construir um plano alternativo 
para se prevenir da morte
Um dia quando ela se chegou muito perto, 
deitada na minha cama, 
roubando-me afagos 
confidenciou-me:
- dou-te mais tempo...
vai por aí, colhe flores,
canta o sol, o mar, os jardins, 
escreve as noites nas fases de várias luas
desenha os dias de risos, 
saúda as cervejas, 
o vinho tinto sangue
esculpe os passos de dança, 
o abraço quente 
marca os beijos doces
saboreia os frutos secos
devora as palavras dos livros, as palavras dos poetas, 
pinta as palavras tuas.
Oferece-te de presente
ao namoro que te vestir de musica
e ao te despir a essência
te descobrir deusa.
Ao se despedir sem me tocar,
(ela que me possui)
murmurou:
o teu corpo não me pertence
é a tua alma louca que virei reclamar.
Não me levou
e a sonhar com a vida me deixou.
Nos seus conselhos vou confiar
viverei em paz
embrulhando em lucidez a minha loucura 
até tudo terminar.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Viagem com o meu avô

Manuel Simões Simões Ferreira, homem da minha vida.
Hoje dia 1 de Maio celebro-te. Com musica e escrita.
Ao vires ao mundo neste dia deste origem à minha felicidade maior. Para sempre seremos um. 
Oh happy day! Um dia feliz para mim.
Uma celebração que gostámos sempre.Dia do trabalhador,dia de conquistas.
O teu dia.
Estamos ligados pelo amor, palavras,literatura e música. 
Silêncios, cumplicidades e brincadeiras. 
És o meu herói, o meu dom de amar, as minhas virtudes, o meu talismã, o meu fado, o meu destino, o meu equilíbrio, o meu tesouro. O meu conselheiro, a minha saudade maior. Minha ausência diariamente sentida.
Mas diariamente a tua companhia é por mim percebida.
Diariamente guardado, admirado e nunca nem por segundos esquecido.
Dizem que te apaixonaste por mim mal me viste. Tomaste-me para os teus braços e de lá não saí mais. Dos teus braços e da tua vida. 
Deixaste de saber viver sem mim. Dedicaste-te a mim. Dizias que morrias se eu não estivesse presente. Até ao último suspiro fiquei.Na véspera de me deixares chamaste-me para te cantar um fado. Eu só queria rir. Eu a cantar o fado, bem... cá vai...cantei. Tu disseste que eu estava desafinada. Espero que não tenha sido o choque de me ouvires cantar que te fez ir embora demasiado cedo.
Desde que te percebi, apaixonei-me e a ti me dedico. Cada dia da minha vida. Ainda hoje a minha vida te dedico. Como retribuição. Durante muitos anos não soube o que era viver sem ti. Depois habituei-me. A tudo nos habituamos. Mas não esquecemos.
Somos perfeitos um com o outro como costumávamos dizer em cada longo passeio que fazíamos. E estes aconteciam diariamente. Eu corria à tua frente e voltava para te dar a mão. Tu dizias que eu andava duas vezes mais do que tu. Cada passo teu eram 5 meus. Ríamos das minhas tentativas de te acompanhar os passos. Qualquer acontecimento da minha vida simples, pequeno, ou importante, tu estás presente. Formaste-me o carácter. Ensinaste-me a ser independente, responsável, rebelde e livre. Um dia eu teria de cuidar de mim sozinha dizias-me. Antecipaste na perfeição. 
Vivíamos no tempo do fascismo, eu sendo rapariga estava ainda mais desprotegida, os meus pais viviam longe. Tu eras velho, dizias. 
Ensinaste-me a ser inconformada, consciente e curiosa, a procurar respostas por mim. Ensinaste-me a ler e sobretudo a amar as letras. A gostar de escrever. Protegeste-me, defendeste-me e deste-me reguadas. Eu fugia à volta da mesa redonda e tu corrias atrás sabendo que ia acabar em mais uma das nossas brincadeiras.Ouvias-me pacientemente cantar e repetir as canções do festival da eurovisão. Tanta paciência...
Sabias de tudo: química, física, matemática, astronomia, História, literatura...
Comias com uma travessa de porcelana chinesa que tinhas trazido de uma das tuas viagens( que guardo) e talheres de prata. 
Ensinaste-me a sentar e a comer como uma senhora. Aprendi tudo. Queria aprender tudo o que viesse de ti. Queremos sempre absorver tudo o que vem dos nossos heróis.
Hoje se me visses...até como sentada numa tabanka em cima de uma capulana e com as mãos. 
Éramos o rock e a amiga, sem eu saber quem eram esses personagens. Éramos uma dupla imbatível. Tu com 2 metros de altura, lindo e eu um "cotomisso" como dizias. A tua besnica como dizia a avó.
Quantas vezes enquanto escrevo os teus olhos claros vertem a transparência do teu amor sobre as minhas palavras e aí eu sei que elas deixam de ser as minhas poesias e são as nossas. 
O mundo me explicas através delas. Como sempre fizeste. Sempre as palavras.
Todas te dedico. 
Até breve meu amor. 
No dia em que me fores receber, 
é no teu abraço 
dentro do teu peito 
como num dia distante aconteceu,
que me quero perder.

https://www.youtube.com/watch?v=a37bBm8pXSk

quarta-feira, 8 de abril de 2015

rEflexões

Incondicionalmente condicionado?
Como no olhar de uma criança sem idade
que é feliz
é minha obrigação
ser feliz por ser quem sou
cortando as correntes que me prendem
às circunstâncias que não me deixam ser
feliz por ser eu
no 






“It feels so good to go someplace. 
Except when you want to stay right there where you are.”- Exposição no MoMa
de Maira Kalman and Daniel Handler
Morremos (literalmente) quando estamos a tentar ir ou ficar nalgum lugar?
Ou morremos (metaforicamente) se nem um nem outro experimentar?
Então porquê tentar sequer ir ou ficar?
Porque a vida me vai encontrar.
Esteja eu na viagem de barriga para o ar a boiar,
ou de barriga para baixo a nadar.caminho por onde vou

domingo, 5 de abril de 2015

Guiné-Bissau com amor

O amor faz-me o que lhe faço
alimenta-me
eu a ele, ele a eu
sem ele não posso ser eu
porque ele é o que sou,
nem nada ver
nem de nada ter
tê-lo e ser seu
é assim um tanto de querer
Ele toma posse
terra,horizonte,mar
sob a forma de gente,
ilha,imagem, lar,
alimenta-me de um olhar
veste-me de um suspiro
é flecha é lança
é linha é pião
rodopia-me na sua mágica dança
despe-me de modéstia
recolhe-me a desesperança
bebe-me de inspiração,
ouve-me no silêncio a desejar
como se nunca me tivesse esquecido
manga verde, cajú, batuque
ostra, peixe seco, dendém
tabanka, ritmo de ancas, pilão.
Saudade estranha esta que me invade
em momentos de lúcidos sonhos
em noites de lua nua,
da terra desconhecida,
que do seu ventre me fez dádiva sua,
e numa oração,prece,reza divina
fazer um feitiço
para regressar ao amor
onde o

meu umbigo
enterrado ficou
sem sacrifício nem dor
como um dia fui para ela,
apenas prazer,
e no seu ventre de novo
de amor renascer

sexta-feira, 27 de março de 2015

Em mim cabem todas as cores - Exposição Djumbai

Um dia eu tinha de escrever sobre mim, sobre a discriminação, sobre o "bullying". Sobre quem sofre este preconceito. Pela cor.Preta. Ou a ausência dela. Ou a única cor. Por uma cor. 
Por uma cor? Diferente? 
Foi com este quadro que irá estar na exposição do Sidney que apareceu a inspiração.
Chama-se Natan. 

Em mim cabem todas as cores

Tens de ser branca
fazer como os brancos
e de tanto conviveres com eles
ficas branca...
Um pouco de pó de talco e mudo de cor...
"Preta da Guiné, lava a cara com xulé"
"preta retinta",
bata rasgada, botões arrancados
de tanto soco dar,
de tanto puxão suster
de tanta lágrima calar
de tanto soluço abafar
por tanto insulto receber
Preta, mulata
o mesmo peito, o mesmo coração
branca
as mesmas pernas, as mesmas mãos
Então...
porque razão?
Procurando consolo fica a menina criança, o menino homem
sem tamanho,
grande como um humano,
Não, não me zanguem mais
não, não me magoem mais
é esta a pele que tenho
é esta a pele que não me deixa
é esta a pele que não gosto.
É nesta pele que sou...desconfortável
para mim
para os outros que me magoam, que me zangam.
Quero voltar a mim,
agarro no dedo com força entre os lábios grossos 
de preta
nos lábios grossos mulatos de preto,
nos cabelos 
de fios escarpados como montanhas brancas
lisos como Himalaias negros,
frondosos como selvas
de planuras feitos, como savanas,
conforto-me com ele na boca,
sinto o sangue que sai do coração a passar 
pára no céu da boca e traz-me a mensagem:
-Este sangue que trazes,
é o sangue dos teus avós, pais e ancestrais
pretos e brancos
sementes de todos os continentes, rios, lagos, montanhas e oceanos,
fizeram de ti preta 
e mulata
Igual.
Lembra-te 
És a tua pele e és a tua alma.
Aceita como se aceitasses chocolate
branco ou preto
e todos gostam de chocolate não é?
e de doces de várias matizes
como uma palete de 
Van Gogh ou Rembrandt
ou Malangatana
Como uma musica blues e jazz
samba ou morna
ou rock em roll
cabem todas as cores.
Cada uma com a sua dor
Preta pele, alma sem cor
Não a podes mudar. 
Essa é quem és: preta! preto!
Esse é quem és:mulato! mulata!
Na tua alma não cabem distinções
nem fronteiras, 
nem descriminações
Não a podes mudar. 
Muda sim o orgulho 
pela sua criação.
Que artista, que poeta
o criador
que te inventou assim
com tamanha imaginação!

Estão todos convidados para a exposição


domingo, 22 de março de 2015

Travessias

O dia estava quente e o passeio decorria sereno pelas paisagens deslumbrantes da África do Sul, perto da Cidade do Cabo. De repente um desafio. Para ir conhecer uma floresta absolutamente magnífica pela quantidade, densidade e beleza da sua flora, tinha de atravessar uma ponte. Como a da imagem. Feita de cordas e traves de madeira. Oscilava ao vento ligeiro que se fazia sentir. A distância era de cerca de 1 km. A uma altura de um prédio de vinte andares o mar entrava e corria alegre, vestido de ondulação escura.
Recuei: Não consigo. Não vou! Não quero saber do que vou ver do outro lado. Fui incitada.Vamos! É fácil...
Gente deslocava-se nos dois sentidos admirando suspensos a maravilha da travessia. Lia-lhes nos rostos como se divertiam, como era fácil e excitante. 
Eu paralisada com o terror que me invadia, deixava-me estar ali, com os pés fincados na terra a olhar o mar que rugia lá muito ao fundo. 
-Não, não vás, dizia-me a mente: -podes cair e morrer.Se cais sofrerás muito. Deixa-te ficar em segurança.Os loucos que façam a travessia, mas tu não! Não és louca. Danças comigo aqui dizia-me a segurança. Não dances lá, no ar maravilhado que aquelas pessoas trazem. Elas...tiveram sorte. Podes não ter...Fica. Nem todos têm de seguir o caminho da coragem, da loucura, do risco. De cada vez que o vento abanar, vais abanar com a ponte e corres riscos maiores: de perder o equilíbrio, uma tontura, uma vertigem e cais...Não confies na ponte, ela vai-se partir e...
-hei...anda, o que te define perante ti própria é a fé cega. Em ti própria. Vais sentir um momento de tremenda felicidade neste caminho onde vais de de olhos vendados. Experimenta ser verdadeiramente ousada, arrojada, exactamente para exprimires o que te é mais difícil. De que te serve o medo? Só te serve para abdicares da tua melhor expressão, que é isto que estás a praticar nesta viagem que é a vida. Tens de conhecer o quanto és capaz nas travessias difíceis.
Morrer? pois bem, se acontecer hoje ou amanhã terá de ser, que seja então a ir para um lugar onde buscas conhecer o melhor de ti próprio.
Era a voz de alguém que habitava dentro de mim, que me conhecia e confiava. Acreditava que eu seria suficientemente inteligente para, mesmo hesitando, fazer a viagem. Sem nada pensar e apenas sentir.

Avancei. Alguns momentos andei de olhos fechados. O medo impedia-me de os abrir. Agarrei as cordas porque disso dependia a minha vida. Abanava e parava para sorver oxigénio confirmando a minha condição mortal.
Fui. E fiz o caminho de regresso. 
O que vi, guardei numa palete de memórias que me faz hoje colorir com poesia e  felicidade quase todos os momentos da vida.
Naquelas cordas, naquelas traves de madeira deixei uma parte da minha pele.
Aquela travessia foi uma das metáforas da vida que sou, transformada em viagens, vividas intensamente. 
Naquele momento de decisão e ao longo da minha desesperada travessia, fiz a viagem dentro de mim.
O medo perdeu o poder que tinha e que me poderia consumir. Quando se envolve comigo, faz-se interagir com a mesma voz que me diz: 
-qual é a melhor expressão de quem és? Medo?
E vou dançando, atravessando pontes inseguras de cordas e tábuas de madeira. Com a felicidade dentro da minha pele. 
Na viagem com as palavras, todos os dias, perco mais um pedaço de pele, a que guarda medos, e sigo cumprimentando-o com um aceno. Dou mais uns passos na frágil e assustadora ponte. 
Porque tenho de dar voz a essa fé cega na voz que me guia a coreografia.
Que ninguém me julgue se não entender a minha dança, a minha pele. Significa que não está a ouvir a mesma música. 
Para encontrar a sua, terá de fazer a sua travessia, na sua ponte de cordas e pedaços de madeira a abanar com o vento e, tendo o mar escuro para o receber. 

A travessia faz-se usando uma fé cega. Muita fé. Apenas no poder que temos em ouvir-nos a nós próprios.


segunda-feira, 9 de março de 2015

Pacto entre mistério e surpresa

Pacto entre mistério e surpresa:

-Este é o manuscrito, por ambos assinado num canto à imperfeição

Num silêncio a alma transmitiu-me as suas palavras.
Para não me perder na sua tradução,
escrevi-as num sopetão:

-És o mistério da vida. Ela a tua surpresa.

No intervalo que o tempo me dá entre a
consciência de mistério viver
e a surpresa de acabar.

A vida é tão estranha quanto bela.
Do que mais gosto dela? (Olha-me de lado…)
Das suas surpresas.
Um exemplo? De repente, sem aviso prévio, termina.
É um mistério!

Por ser assim torna tudo mais frenético, mais insano, mais autêntico.
Para que me tenha sempre empenhada.

Mais outro exemplo?
Num passe mágico surpreende-me com flores
nas suas várias manifestações:
-uma história de amor, um novo amigo, uma viagem, uma nova casa, um novo projecto, um novo estudo, um filho, um neto, um talento desconhecido, um quadro, uma imagem, uma praia, um livro

Se sempre assim for torna-me descuidada, relaxada,
esperando matreira a garantia de receber
que assim me deixe ficar
enquanto o corpo me pertencer,
sem que eu pense nas suas surpresas
não apenas de prazer.

Porque faço? Que faço?
Que devo fazer?
perfeita devo ser?
ou procuro alguém perfeito?
consegui-la-ei perfeita?

Para esta mina
que me disse chamar-se vida
trouxe um manuscrito e nele assento o que encontro:
pedras, pó, escolhos e diamantes.
Em bruto.
Vou descobrindo,
escavando,
esculpindo 
lapidando

agora largando o pincel, a tinta e o aparo
digo-lhe suavemente:

-não, não quero ser perfeita como o vento e as marés
a lua e o sol enquanto se dançam,

Não, não quero ninguém perfeito
cansado de se mostrar perfeito a meus pés

Para não mais ser surpreendida,
pela visita entristecida da perfeição
e me manter o mistério da vida
sento-me a observá-la
contemplando-a respirando.

Às vezes surpreendo-a
Misteriosamente…
viro-a do avesso,
descalçando-a, desarrumando-a
despindo-a, fazendo-a desaprender
até encarar uma nova e perfeita surpresa
que a venha engrandecer.

Ser perfeito
esgota-me a alegria do olhar,
envelhece-me os dedos da alma
que me murmura a sua tristeza,
enruga-me a pele do coração
levar-me-ia à loucura 
consome-me o tempo que me resta,
faz parar os impulsos das surpresas por descobrir
entardece o encantamento do meu esculpir

No intervalo que me concede,
estendo-lhe uma toalha de quadrados,
aconchego-me na sua maciez
afago-lhe a planura
do ventre prateado
dispenso o copo que partilhamos
bebo-lhe o vinho,
da boca pura,
enrosco a minha língua
na sua língua estreita
saboreio-lhe a textura
sorrindo
sopro-lhe ao ouvido:
sou o teu mistério,
feito das tuas surpresas

e não, não quero ser perfeita