domingo, 22 de março de 2015

Travessias

O dia estava quente e o passeio decorria sereno pelas paisagens deslumbrantes da África do Sul, perto da Cidade do Cabo. De repente um desafio. Para ir conhecer uma floresta absolutamente magnífica pela quantidade, densidade e beleza da sua flora, tinha de atravessar uma ponte. Como a da imagem. Feita de cordas e traves de madeira. Oscilava ao vento ligeiro que se fazia sentir. A distância era de cerca de 1 km. A uma altura de um prédio de vinte andares o mar entrava e corria alegre, vestido de ondulação escura.
Recuei: Não consigo. Não vou! Não quero saber do que vou ver do outro lado. Fui incitada.Vamos! É fácil...
Gente deslocava-se nos dois sentidos admirando suspensos a maravilha da travessia. Lia-lhes nos rostos como se divertiam, como era fácil e excitante. 
Eu paralisada com o terror que me invadia, deixava-me estar ali, com os pés fincados na terra a olhar o mar que rugia lá muito ao fundo. 
-Não, não vás, dizia-me a mente: -podes cair e morrer.Se cais sofrerás muito. Deixa-te ficar em segurança.Os loucos que façam a travessia, mas tu não! Não és louca. Danças comigo aqui dizia-me a segurança. Não dances lá, no ar maravilhado que aquelas pessoas trazem. Elas...tiveram sorte. Podes não ter...Fica. Nem todos têm de seguir o caminho da coragem, da loucura, do risco. De cada vez que o vento abanar, vais abanar com a ponte e corres riscos maiores: de perder o equilíbrio, uma tontura, uma vertigem e cais...Não confies na ponte, ela vai-se partir e...
-hei...anda, o que te define perante ti própria é a fé cega. Em ti própria. Vais sentir um momento de tremenda felicidade neste caminho onde vais de de olhos vendados. Experimenta ser verdadeiramente ousada, arrojada, exactamente para exprimires o que te é mais difícil. De que te serve o medo? Só te serve para abdicares da tua melhor expressão, que é isto que estás a praticar nesta viagem que é a vida. Tens de conhecer o quanto és capaz nas travessias difíceis.
Morrer? pois bem, se acontecer hoje ou amanhã terá de ser, que seja então a ir para um lugar onde buscas conhecer o melhor de ti próprio.
Era a voz de alguém que habitava dentro de mim, que me conhecia e confiava. Acreditava que eu seria suficientemente inteligente para, mesmo hesitando, fazer a viagem. Sem nada pensar e apenas sentir.

Avancei. Alguns momentos andei de olhos fechados. O medo impedia-me de os abrir. Agarrei as cordas porque disso dependia a minha vida. Abanava e parava para sorver oxigénio confirmando a minha condição mortal.
Fui. E fiz o caminho de regresso. 
O que vi, guardei numa palete de memórias que me faz hoje colorir com poesia e  felicidade quase todos os momentos da vida.
Naquelas cordas, naquelas traves de madeira deixei uma parte da minha pele.
Aquela travessia foi uma das metáforas da vida que sou, transformada em viagens, vividas intensamente. 
Naquele momento de decisão e ao longo da minha desesperada travessia, fiz a viagem dentro de mim.
O medo perdeu o poder que tinha e que me poderia consumir. Quando se envolve comigo, faz-se interagir com a mesma voz que me diz: 
-qual é a melhor expressão de quem és? Medo?
E vou dançando, atravessando pontes inseguras de cordas e tábuas de madeira. Com a felicidade dentro da minha pele. 
Na viagem com as palavras, todos os dias, perco mais um pedaço de pele, a que guarda medos, e sigo cumprimentando-o com um aceno. Dou mais uns passos na frágil e assustadora ponte. 
Porque tenho de dar voz a essa fé cega na voz que me guia a coreografia.
Que ninguém me julgue se não entender a minha dança, a minha pele. Significa que não está a ouvir a mesma música. 
Para encontrar a sua, terá de fazer a sua travessia, na sua ponte de cordas e pedaços de madeira a abanar com o vento e, tendo o mar escuro para o receber. 

A travessia faz-se usando uma fé cega. Muita fé. Apenas no poder que temos em ouvir-nos a nós próprios.


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