segunda-feira, 9 de março de 2015

Pacto entre mistério e surpresa

Pacto entre mistério e surpresa:

-Este é o manuscrito, por ambos assinado num canto à imperfeição

Num silêncio a alma transmitiu-me as suas palavras.
Para não me perder na sua tradução,
escrevi-as num sopetão:

-És o mistério da vida. Ela a tua surpresa.

No intervalo que o tempo me dá entre a
consciência de mistério viver
e a surpresa de acabar.

A vida é tão estranha quanto bela.
Do que mais gosto dela? (Olha-me de lado…)
Das suas surpresas.
Um exemplo? De repente, sem aviso prévio, termina.
É um mistério!

Por ser assim torna tudo mais frenético, mais insano, mais autêntico.
Para que me tenha sempre empenhada.

Mais outro exemplo?
Num passe mágico surpreende-me com flores
nas suas várias manifestações:
-uma história de amor, um novo amigo, uma viagem, uma nova casa, um novo projecto, um novo estudo, um filho, um neto, um talento desconhecido, um quadro, uma imagem, uma praia, um livro

Se sempre assim for torna-me descuidada, relaxada,
esperando matreira a garantia de receber
que assim me deixe ficar
enquanto o corpo me pertencer,
sem que eu pense nas suas surpresas
não apenas de prazer.

Porque faço? Que faço?
Que devo fazer?
perfeita devo ser?
ou procuro alguém perfeito?
consegui-la-ei perfeita?

Para esta mina
que me disse chamar-se vida
trouxe um manuscrito e nele assento o que encontro:
pedras, pó, escolhos e diamantes.
Em bruto.
Vou descobrindo,
escavando,
esculpindo 
lapidando

agora largando o pincel, a tinta e o aparo
digo-lhe suavemente:

-não, não quero ser perfeita como o vento e as marés
a lua e o sol enquanto se dançam,

Não, não quero ninguém perfeito
cansado de se mostrar perfeito a meus pés

Para não mais ser surpreendida,
pela visita entristecida da perfeição
e me manter o mistério da vida
sento-me a observá-la
contemplando-a respirando.

Às vezes surpreendo-a
Misteriosamente…
viro-a do avesso,
descalçando-a, desarrumando-a
despindo-a, fazendo-a desaprender
até encarar uma nova e perfeita surpresa
que a venha engrandecer.

Ser perfeito
esgota-me a alegria do olhar,
envelhece-me os dedos da alma
que me murmura a sua tristeza,
enruga-me a pele do coração
levar-me-ia à loucura 
consome-me o tempo que me resta,
faz parar os impulsos das surpresas por descobrir
entardece o encantamento do meu esculpir

No intervalo que me concede,
estendo-lhe uma toalha de quadrados,
aconchego-me na sua maciez
afago-lhe a planura
do ventre prateado
dispenso o copo que partilhamos
bebo-lhe o vinho,
da boca pura,
enrosco a minha língua
na sua língua estreita
saboreio-lhe a textura
sorrindo
sopro-lhe ao ouvido:
sou o teu mistério,
feito das tuas surpresas

e não, não quero ser perfeita


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