sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Despedida

Entre malas com excesso de bagagem, vento e música, embrulho esta história que acabo de compor,( baseada em vidas de verdade) e levo na minha mala. Porque as histórias verdadeiras são as mais belas. Ofereço aos suspeitos do costume. A tribU. A maravilhosa pintura que a acompanha vem do Sidney Cerqueira
Feitiço
Partiu no porão do navio. Com grilhões nos pés amarrada ao banco de madeira. Grávida de um terceiro. Com dois filhos pequenos ao seu lado.
-Antes assim,pensava Mel. Vou ter com o indiano,o amor da minha vida.Sou metade de um coração por causa do seu amor. A outra metade é a saudade que ele deixou ficar.
O barco sulcava violentamente as águas atormentadas, como a sua alma e o seu coração.Quando todos vomitavam quase perdiam a vida.
O barco rumava entre Cabo-Verde e São Tomé levando escravos para as roças de cacau.As crianças eram também obrigadas a fazer uma jornada igual aos seus pais.
O indiano não era indiano apenas parecia indiano. Caboverdiano, lindo, de cabelos negros e lisos e olhos azeitona. Todas as mulheres por ele suspiravam. Julio de seu nome.
Julio e Mel apaixonaram-se no momento em que as suas almas se reconheceram.
Mel acreditava que assim era. Agora o colono levava-o para longe da sua ilha, para outra bem distante.
Tanto tinha lutado que preferia ser escrava nas roças que ficar sem a proximidade do cheiro, do olhar, dos beijos quentes do seu indiano que não era indiano mas caboverdiano.
Mais dois filhos nasceram na roça. Todos trabalhavam jornadas duras e suadas.
A terra santomense recebia o sal das lágrimas e do suor, temperando com ele a fertilidade do cacau amargo que dela despontava.
Mel a estrangeira, desde o dia que pisara a terra, era odiada pelas outras mulheres locais. Todas queriam o belo Julio.
Fizeram-lhe um feitiço para a matar. Assim que ela morresse, tomariam conta dos pequenos e do belo e vigoroso homem caboverdiano que parecia um indiano mas que na negrura dos seus olhos apenas via luz nos olhos cor de avelã da sua doce Mel.
Mel ficou doente. Caiu na esteira com febres altas, talvez as febres dos mosquitos, talvez feitiço.
Julio não podia estar com ela, trabalhava sem descanso. Era um dos melhores escravos da roça.
-Pai pede para eu ficar ao lado da mãe a cuidar da mãe,pediu o filho mais velho, Manuel. Julio olhou o filho e viu-lhe as lágrimas que escorriam no rosto sujo. Julio sabia que só este filho poderia dar vida à mulher que o fizera nascer.
Em pouco tempo Manuel era autorizado a ir para junto da sua mãe. Manuel, o mais velho, de sete anos, inteligente como poucos sabia ler e escrever e entendia a língua da sensibilidade. Para tanto bastava estar presente e com o seu olhar avelã cristalino como o da sua mãe, trazia conforto.
-Este nosso filho não é deste mundo, dizia em surdina Mel deitada com a cabeça apoiada no peito de Julio.
Manuel entrou na casa de pau a pique construída pelo pai e olhou a sua mãe. Ali estava deitada de lado, respirando pesadamente entre gemidos. Esfregou-lhe os pés. Afagou-lhe a fronte. Deitou-se na esteira ao seu lado abraçando-a pelas costas e ficou em sossego. Adormecido.
Manuel não voltou a acordar no mundo que nem sempre ama os vivos. Foi para aquele de onde veio, no útero de sua mãe Mel.
Diz quem viu que o feitiço passou pelas costas de Mel para o coração de Manuel e este fez parar.
Julio cansado, com a doença da tristeza juntou-se a Manuel, quando a folha da bananeira ficou verde, pronta a deixar rebentar o fruto.
Com oito filhos, Mel recuperou da dor da vida, e, feita de coragem regressou à sua ilha em Cabo-Verde. Cuidou da vida de todos os seus filhos, metade seus metade do seu amor Julio, com o mesmo desvelo e amor de sempre. Como mel.
Feita metade de um coração por causa do seu amor por eles. A outra metade feita da saudade que Julio e Manuel deixaram ficar.
Em São Tomé, Mel, deixou o feitiço enterrado.


Para este quadro, Despedida, de Sidney Cerqueira escrevi um poema. Visitem a nossa exposição conjunta no Centro Cultural da Malaposta. Ele pinta eu poemo-lhe as pinturas

tenta não me esquecer
encontras-me do outro lado do mar
quando as ondas os teus pés beijarem
são os meus que vão trazer lágrimas
para os teus lábios salgar
tenta não me perder
quando vires o sol desaparecer
do outro lado acontece um sublime amanhecer
quando em segredo te acordar
tenta não me esquecer
quando a lua te acariciar
sou eu vestida de nostalgia
para em ti me procurar
tenta te lembrar
que de noite ou de dia
te vou sempre encontrar
para que nunca sejas capaz de me esquecer








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