quarta-feira, 31 de julho de 2013

DESPERTARES Pemba, os meus

6.30 da manhã:

Acordo com gritos violentos: ”minha senhora, minha senhora, sai de casa”
Dou um salto da cama e levanto-me penosamente com os gritos que não param. 
Como sempre, estou em modo Calvin quando decide fazer arrumações: não sei onde está a chave!
 e os gritos continuam…
“há fogo minha senhora, sai de casa” e eu à procura das chaves…
Grito também: “já ouvi! Não sei das chaves, não posso abrir a porta e se há fogo alguém desligue o quadro da electricidade! 
Estava a dar demasiada informação…
O grito colectivo mantém-se como se ninguém me tivesse ouvido.
Qual cartoon…
10 anos mais tarde…
eis que as chaves aparecerem não sei de onde e desgrenhada e ramelenta abro a porta e vejo um quadro que não sei se me escangalhava a rir se a chorar se panicar:
Por trás de uma nuvem de fumo e umas labaredas, um grupo de empregados da casa principal todos juntos a gritar e nos rostos lia-se o medo. 
Virei costas entrei em casa e fui a correr para o quadro eléctrico no lado oposto da casa. Desliguei-o e fui perceber o drama.
“Afenal”um canalizador tinha estado a substituir um cano e só substituiu metade. A outra metade, continuava podre, corroída pela idade. Já lá estava desde que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo…
Colocou terra em cima, o cano rebentou e o fumo que saía era ar a ferver…e chamas à mistura perto de uma ficha eléctrica.
Não percebi se o perigo foi real ou se podíamos ter morrido todos. Aos gritos. Ou não.
Disse-lhes que estava eternamente agradecida, sobretudo porque gritaram, mas não desligaram o quadro…Eles queriam só salvar a “sua senhora”.
Como ainda me restava meia hora de sono, não o desperdicei.

04.30 da manhã…

De um salto estou sentada na cama sem perceber onde estou…enquanto ouvia um silvo: allahhhhhhhhhh
O que me fazia despertar?…
Cartoon seguinte:
Eu quase a descabelar-me… o allahhhhh continuava...
Afinal era o maulane da mesquita na 1ª reza da manhã. Em cada aldeia, em cada esquina há uma mesquita e o dia de rezas começa às 04,30…
Nunca mais vou dormir à aldeia, sem levar tufos para os ouvidos! 2 pares!

Na aldeia, onde vive a Vera “Blixen”, em cima da praia para onde vou frequentemente, as pessoas vivem em comunidades estreitas quer se queira quer não.
O vizinho da Vera construiu a casa dele, geminada com a da Vera, em material local.
Ela sabe quando ele está na casa de banho, no quarto ou na sala pelos barulhos que oferecem pistas.
O vizinho não trabalha e descobriu o amor pela música e pelas motorizadas.
Daí a comprar uma aparelhagem chinesa (naturalmente) em décima mão com más colunas foi um pequeno passo na sua evolução como pessoa.
O som ouve-se na aldeia vizinha, mas é na casa da Vera que a musica africana de qualidade…se vive com intensidade!
E assim despertamos muitas vezes…
tantas que já deu direito a queixa e a um pedido de desculpa formal. Depois, acalmou.
Mas só porque a aparelhagem morreu de repente. Foi a praga que lhe rogámos! Benditos produtos chinas de curta duração!
As motorizadas…bem, ele não tem guito para o gasóleo, apenas as põe a trabalhar às 05.00…para ouvir o som celestial do motor! Sobretudo agora que a aparelhagem pifouJ. Numa de vingança contra as molungas.
Para lá ir dormir preciso de 2 pares de tufos…

06 e picos…

Cum raio me caia em cima foi o que pensei quando saltei na cama!
Um choro intenso e sofrido, muito muito alto. Magoava os ouvidos e a alma. Mas que raio…
Era sexta-feira, dia de sacrifício do cabrito na religião muçulmana. Estava a acontecer ali mesmo no meu quintal.
E é sempre assim, às 6as haja feira ou não, há sacrifícios.
3 pares de tufos nos ouvidos são poucos!

“Minha senhora não lhe vi 2 dois dias, onde estavas minha senhora? Estava muito preocupado”. “Trouxe esta papaia para a minha senhora”
Eu tinha ido passar o fim de semana para a praia e estas foram as palavras do meu guarda (sim tenho um guarda, toda a gente tem) quando despertei.
Dorme na minha porta e um dia destes que saí à noite, quando voltei, consegui a proeza de abrir a porta de casa, saltar por cima dele e fechar a porta…sem o acordar. 
Pensei: deve estar a usar os meus tufos…
Ahh e a papaia? Agradeci e respondi: “quanto te devo?” “Nada! Apanhei num quintal para ti”.
“Num quintal? Então e os donos?”
“Não vi ninguém, não tem dono… e há muitas lá, podem dividir”

Soube-me ainda melhor o pequeno-almoço.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Mercado inclina, na Beira

Em tons laranja papaia e amarelo ananás, com os acastanhados das maçanicas, que cobrem as maçaniqueiras, o sol, deu-me o acordar do dia com um convite:
-hoje vamos fazer compras a África. Naquela profunda!
-Gostas de fazer compras?
-Hum, retorqui, nem por isso…a não ser frutas, aí perco-me.
Perdi ao longo dos anos o gosto que nunca foi verdadeiramente nascido em mim, por hipermercados. Prefiro mercearias onde converso com toda a gente e escolho o feijão,o milho, as mangas e as verduras, enquanto a vida se desenrola sem pressa.
-Gostas de inclinar?
-Inclinar?
De mente aberta esperei a resposta,não pensando em nada,já que me habituei em África, a andar despida de expectativas mas coberta por surpresas de cores quentes.
Esperar sempre sim, que o dia a dia me traga muitas novidades.E este dia trazia também.
-Vamos à boutique inclina! A maior boutique a céu aberto da Beira.
-O quê? Mas claro que sim! onde fica esse lugar?
-É já ali (como dizem os alentejanos). Prepara-te para andar um bom bocado!
Ou seja, exactamente o que eu gosto. Preparei a minha mochila e fui imediatamente advertida:
-hey rapariga, só podes levar chapéu e dinheiro no soutien. Nem telemóveis, nem carteiras. Ri-me, coloquei um lenço colorido na cabeça, as minhas calças tailandesas confortáveis, chinelas, uma malinha na cintura e parti para mais uma aventura africana… na África real.
E em menos de 10 minutos estava em Goto, nome mais conhecido do mercado. Tchungamoyo, em dialecto ndau, traduz-se por “aperta o coração”. Mercado paralelo, onde toda a gente comprava, antes de existir qualquer outro. Uma necessidade inerente à existência, em tempos de guerra. Quem lá conseguia vender, fazia “apertar o coração” a quem comprava, por pouco ter.
Tal como em Maputo, dumba-nengue, em ronga, significa “confia nas pernas”, porque alguém podia ter de fugir com as compras fresquinhas, perseguido pelas autoridades policiais.
Ali estava eu, metida no meio de centenas de bancas cobertas com plástico, num terreno enlameado, porque tinha chovido de noite, numa autêntica cidade, com mil ruelas, e fardos, fardos, fardos. Fardos de calamidades como são chamados.
Roupas usadas, novas, sapatos, mochilas, vestidos de noivas, capulanas, tachos, panelas, casas de câmbios, entre mil outras actividades económicas. Tudo no chão, em cima de plásticos com pilhas de roupa. 
Nem todos os sapatos têm par, e, pode acontecer levar um “sábado e um domingo”. Ou seja, um sapato de cada nação. Por isso o par fica mais barato.
Algumas mais sofisticadas têm as peças penduradas em ramos cortados das árvores a fazer de cabides. A criatividade não tem limites.
Há fardos de 5,10,20,25 meticais (tudo menos de 1 euro) e outros de preço variável…são os fardos que dá para negociar ainda mais. As jeans mais caras que comprei,custaram-me €1,25…Fiz várias compras aos meus “bradas” e no total gastei €5,00…só não consegui comprar sapatos por puro burguesismo…são lavados ali mesmo, para ficarem com aspecto reluzente(mas não conseguem).
Ah… também não comprei cabelos de mulheres mortas, porque achei que seria demais,ter uma brada a vir do outro mundo, puxar-me o pé à noite e desmanchar-me a trança, só para me chatear. Seria natural sentir-se ofendida…
Descobri uma banca de um brada, de artesanato, com coisas girissimas. Prometo que lá irei fazer as compras para levar aos meus bradas na lusolândia.
Toda a gente que viveu,foi de férias ou em negócios, já foi a estes mercados gigantes. Roque Santeiro em Luanda, Sucupira na Praia, Bandim em Bissau, ou os dumba-nengues em Maputo como o Xipamanine. Em qualquer Palop e não só. 
O mundo económico e real, africano, em África. Todos se tratam por bradas e com as peles mais claras o preço começa sempre por cima. Negociar é a palavra de ordem.
Discuti preços (obrigatório), ri-me, inclinei-me muitas vezes, descobri as coisas que acabei por ter vontade de comprar, perdi a paciência de ver tanta roupa, cansei-me, sentei-me numa banca a comer tangerinas dulcissimas e a conversar com os vendedores. 
Mas no fim, cansada de andar debaixo do sol que já não perdoava os fracos, estava feliz e com um sorriso de orelha a orelha, naquele hipermercado, onde até andam “tchopelas” (os táxis- que são riquexós motorizados) e por sorte não leva fardos de roupa e fardos de gente à frente.
Ouvi um dos vendedores a pedir em casamento uma miuda linda,dizendo-lhe que era pobre,mas tinha um tchopela para lhe oferecer… a miuda recusou. Já era comprometida com um noivo que lhe prometeu um jeep.
Já no regresso vi uma mochila que me agradou e fui tentar saber quanto, com sotaque . O vendedor tinha ido a qualquer sitio e recebi como resposta do vendedor do lado: 
-“ ei, vucê…se me deres refresco,levas a mochila e eu não conto a ninguém” J
Num país que decididamente olha para a perspectiva de nova guerra entre bradas com a maior suspeição, porque não a aceita, e, apenas quer que a vida continue, nem que seja no meio de fardos/calamidades, até que chegue um novo dia, onde possam ter uma boutique a sério, vim para casa a sorrir.

Contente, de faces rosadas, sem mochila mas com boas compras da boutique inclina J, com a cintura mais elegante de tanto inclinar.