terça-feira, 15 de julho de 2014

Diário de uma aldeia

Sob a forma de nota à tribU fica o convite.

A brisa suave e morna desperta o espanta espíritos que se embala num doce canto a abraçar-me bom dia. O astro rei espreguiça-se sem pressa e prepara-se para cobrir a aldeia com um manto quente. Dizem que se parece com o da minha África. Eu acredito. Porque me faz bem acreditar.
Com um olhar vagaroso até ao mar dou-lhe um lento bom dia.
Deixo-me embalar pela percussão dos sinos das ovelhas que me chega de perto da barragem.
O galo voltou a cantar anunciando ovos do tamanho de laranjas, de gema mostarda e espessa.
Ainda sem obter resposta do corpo adormecido, caminho lentamente em direcção ao odor intenso de hortelã pimenta.
Uma cesta repousa preguiçosamente na cozinha com produtos da quinta e das quintas vizinhas: courgettes, tomate, pepino, alface, salsa, beringelas, batatas pequenas, limões, pêssegos, ovos e oregãos. Hoje vou fazer um matabicho como gosto: mozzarella fresca com tomate e pepino coberto de oregãos, sumo de papaia e pêssego com bagas goji, canela e hortelã, ovos mexidos com salsa fresca e mozzarella para ficarem ainda mais macios.
Colho um pé da buganvília cor de beringela para enfeitar a mesa.
Não tarda tenho também a companhia dos diospiros na mesa do pequeno-almoço pois que já se fazem maduros.
No café a conversa decorre morna, sem preocupações de maior. A política do país deve ser tão desinteressante que se vive à margem.
Gostava de conversar com a senhora mais idosa da aldeia com 99 anos e que se sentou ao meu lado. Uma tarefa deveras complicada. Com o tempo a audição cansou-se como um velho amante e partiu para outros lugares. Mesmo tendo-o perdido a esse amante, ela ficou com o olhar de quem se quer manter fiel à companhia da terra viva.
Tem um problema disse-me. Já não consegue abrir o porta-moedas para tirar o dinheiro e pagar o pão caseiro que foi buscar. Mas o dono do bar ajuda-a. São velhos amigos.

Sou a atracção local, como um circo que se anuncia. Apenas não me fiz anunciar. Apareço para beber cerveja preta, ir à net, comprar cigarros, ler jornais e conversar. Com todos converso e respondo a perguntas.
Transmitem as novas uns aos outros, ali mesmo na minha frente: «veio para cá viver, ali prá casa do Luís».
Sorrio e volto para a minha escrita, numa espécie de diário da aldeia.
Dou corda solta à imaginação e imagino que me veem como uma foragida por um crime de sangue a refugiar-me nestes caminhos perdidos.
Nas aldeias todos querem fugir para a cidade. Por que carga de água uma “jovem” vem para uma aldeia quase perdida? A curiosidade está no ar. Quando me conhecerem vão perceber que não só não cometi nenhum crime, como gosto mesmo de aqui estar.

A cadela dos meus amigos anda a espalhar pela aldeia que eu sou a “cria da sua costela”. Ladra para quem se aproxima de onde estou. Incluindo os gatos. A estes têm-lhes ódio. Deve ser a natureza a pregar partidas…
Quando vem comigo dar um passeio salta e ladra em demonstração de soberba e posse: ela é minha!
É o momento em que fico nervosa ao ouvir: “tem de a prender para que ela não morda a ninguém que se aproxime de si”.
Se vierem tropas napoleónicas ou de outros estados invasores, não conseguirão entrar no pedaço do qual me assenhoreei. A esses, recomendo que se instalem confortavelmente no café da aldeia a provar o sabor dos bolos feitos pelos donos.
À cadela eu digo “fica”. Ela obedece. A eles também direi.
Como me disseram uns amigos suecos de visita por dois dias, em sueco “fica” significa, sentem-se, tomem um café, comam um bolo e deixem-se estar”.

Sente-se vida e, para quem pense que aqui a vida não acontece, como em qualquer lugar onde o ser humano se instale, paixões, traições, lutas, disputas, ciúmes, invejas, dores, perdas, felicidade e tristeza fazem parte da vida das gentes deste cantinho acolhido entre a serra.
Pedaço de terra que já me prendeu. Terra que dá flor de cerejeira mas não cerejas. No entanto tem as melhores ginjas da região.

“Sente-se a felicidade na tua voz” diz-me um amigo com quem falei.
Nunca foram tão apropriadas as palavras de Vinicius de Moraes: que esta felicidade seja “eterna enquanto dure”.
Nunca pertenci a lugar nenhum. Sou uma vagabunda de vida fácil. Sou de todos os lugares e todos os lugares por onde passei já me possuíram. Este lugar também já me tem refém.

Nos dias de vida simples e de muito trabalho a preparar o bem-estar de quem vier a ser acolhido nesta casa, a noite destapa-se e cobre-me com milhões de olhares que piscam enquanto me observam. E eu a elas. São as minhas amigas estrelas.
Sento-me no terraço em conversas lânguidas sobre os homens e o mundo. E sobre a simplicidade da vida a que todos deveríamos ter direito.

A cada dia que me chega, roubo um pedaço do meu aqui na serenidade deste lugar. Para o partilhar. A modalidade mais praticada nesta olímpica aldeia.





Sem comentários:

Enviar um comentário