sábado, 18 de outubro de 2014

"A poesia é para comer"

Encontro entre um homem e a poesia. Peça de teatro.

Um jardim frondoso de aloés, romãzeiras, relva alta. Cadeiras e mesas de ferro branco espalhadas aqui e ali, poeticamente espalhadas.
Grupos de cogumelos e trevos de quatro folhas saíam dos seus esconderijos, agradecidos à humidade da terra.

Pequenos pedaços de cortiça pintados, presos por cordas de sisal aos troncos das nogueiras, laranjeiras e limoeiros de todas as alturas. Alguns ramos tocam o chão, carregados de frutas, amarelo brilhante. Uma estaca de madeira, com uma garrafa de água cortada faz de bebedouro para os pássaros, junto a uma pequena fonte.

O silêncio é tranquilizador, quebrado pela fonte que deixa a água escorrer lentamente para a garrafa cortada. Ao fundo ouvem-se acordes de um piano.
O jardim cheira a jasmim e a erva-príncipe.

Um homem sentado numa das cadeiras de ferro, com uma caneca de chá pousada na mesa, lê em voz alta:

…”Sou uma impudência à mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer! “

A poesia sentada ao seu lado levantou-se, simulou uns passos de dança afirmando segura:

-Castrarei quem tentar castrar um poeta!
Alimento-me de poesia como prato principal da vida, em cada sobremesa das minhas refeições.
Bebo-a até ao final de cada garrafa.
Deixo-a marinar nas cortiças de poemas onde os sonhos repousam, ganham corpo e sabor.
Trago-a sem pudor.

O homem, alto, magro demais para a sua altura, de cabelos ralos e grisalhos, de olhar sombrio, duro com a vida, amaciou o olhar que se tornou da cor da erva doce e voltando-se para a poesia assegurou-lhe:

-Cada dia que passa, mais poesia me acompanha. Mais percebo sobre a vida, quando contemplo o florir de cada dia, como se fosse um poema.
Quando a vida é vulgar e arrogante, quando me coloca a caminhar sobre gelo fino, ou quando não me oferece uma saída…é quando mais preciso de poesia.
Quando me traz amor, liberdade, alegria, fusão com outras almas, ligação de pensamento com outros seres, é quando mais preciso da manifestação da poesia, porque o poema acontece, dentro de mim.

A poesia interrompeu-o docemente observando a emoção vinda daquele homem:

-Os poetas não precisam de estações. Nem de inspirações. A eles basta-lhes a vida. E ouvir a fonte interna, que corre ininterrupta, para além dos limites do coração, inundando-lhes o ser.
Bastam-lhes os sentimentos e as emoções para tão nobre arte ficar exposta.

Nasce a poesia, quando o coração se desfaz em pedaços sem conserto. Quando carregam por tempo demasiado o fardo imposto por uma vivência.
Na obrigatória convivência com aqueles outros que os perturbam. Quando a vida falha. E descompensa, desequilibrando.

Nasce quando um amor não é correspondido. Quando têm de se desprender de alguém que parte numa direcção oposta.
Nasce do fim do amor que a morte abraçou.
Nasce da morte física de um ser amado. Nasce quando se apercebe que é o fiel depositário do seu corpo e não o seu proprietário.
Nasce na urgência de se dar. Porque a poesia não lhe pertence. Nasce da consciência. De se saber inconsciente.
Nasce quando a alma chora porque se sente vazia
e como num milagre é inundada... por poesia.
Nasce a poesia quando o poeta se maravilha perante um milagre. Quando se espanta perante o brilho de um raio de sol a espreitar por entre nuvens matizadas de cinzento.
Qualquer espanto maravilhado é um poema.
Nasce quando lhe regressa o amor ao coração. Ao espírito, à alma.
E renasce ao seu estado de união e ligação com todos.
Nasce no desespero da alma. No sofrimento de quem não quer luz.
Quando o homem chora, no sal das suas lágrimas.
No doce e no sal, por todos os motivos, de dor ou alegria, nasce poesia.
Nasce quando vislumbra um novo olhar sobre a lua que nasce e o sol esconde.
Quando se deixa sentar, no colo do poema, em silêncio, e, observa a quietude.
E nesse silêncio encontra palavras que rompem poeticamente  inundando a seca vida dos que não são poetas.
Na vida daqueles que a sentem e se emocionam porque encontram a vida na poesia.
Em mim. Que me dou cada dia para que me encontram.

O homem com um profundo suspiro de compreensão e agradecimento à poesia falou sem a olhar directamente.
Ela, a poesia, rodeava-o em contemplação:

-É poesia que encontro ao observar os pássaros sentados no diospireiro carregado de frutos maduros. Na bagagem das suas asas trazem a sabedoria do mundo. Enquanto sem pressa ali se deixam despertar pela doçura das flores que os rodeiam.

As flores, as árvores, os frutos sussurram: comam-me, somos poesia.
Os riachos, os lagos, as nascentes oferecem a água com um doce cantar que inunda as emoções: bebem-nos, somos poesia.

Uma caixa de chocolates, um copo de vinho.
Um beijo, um toque, um olhar. Um assentimento, um silêncio. Um sorriso. Uma gargalhada. Um abraço. Uma carícia. Um murmúrio. Uma lágrima.
Em tudo vejo poesia.

Mas um poeta, esse transforma toda a vida em poesia.
E dela faz um poema: no esplendor de todas as estações.

na chuva e no frio, junto do fogo de uma lareira,
no brilho do sol, os pés amaciados pela areia da praia,
no mar que lambe docemente uma pele
no amarelo matizado do castanho do outono
no amarelo matizado do verde da primavera
no amarelo matizado do azul do verão
no amarelo matizado de vermelho do inverno

O poeta vai até ao limite do conhecido, lança-se com fé no abismo desconhecido e... renasce com a poesia.

A poesia tem de ser a minha companheira, inseparável, até ao final dos meus dias.
Dos nossos tempos.
Sem poesia não saberia como dizer, como fazer, ou o que fazer com o mundo.
Ah como eu queria ser poeta. Mas conformo-me...
porque vivo rodeado de ti poesia…

A poesia satisfeita por ter sido encontrada neste jardim mágico, por mais um poeta, abriu as suas asas e voou para encontrar novo coração, não sem antes dizer com voz serena e cristalina:

-Os poetas exprimem-me. Sabem sempre de onde vêm todas as emoções do mundo. E trazem-nas à luz pelas palavras. Da noite fazem dia.

Como a água seguem o curso inevitável, de desaguar em poemas.
Alimentam a música com poesia. Regam a poesia com música.
...Não castrem a poesia. Comam-na nas imagens. Bebam-lhe as palavras. Sorvam-na nos sonhos.

O Homem bebendo o chá que restava da sua caneca, olhando tanta beleza à sua volta, prometeu-lhe:

- Nesta viagem maior que é a minha relação, sempre em construção, comigo próprio, não vivo sem o alimento que me vem de ti, no poema da vida.

Contigo poesia…aprendo e estudo! Mergulho na sabedoria que me dás.
Não, não vivo sem ti. Nem quero viver.
Nem sem música que é ela própria poesia.

Muito menos sem os poetas.
Castrarei quem os tentar castrar.

O sol mansamente observava o homem, e, encostava-se lânguidamente ao ocaso, deixando um rasto de tons quentes entre o rosa e o azul, atravessando o laranja até ao vermelho.
Um poema escrevia-se no céu.

A poesia voltando atrás e fez o homem levantar a cabeça, agarrando-o no queixo:

-Vês ali? Saberão eles que a formação, em forma de asa de borboleta é um poema?

Um bando de pássaros cruzava o céu, por cima da casa, levando poesia na ligação migratória entre eles.

Tal qual a missão da poesia entre os homens: interligá-los.

Fim




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