sexta-feira, 26 de julho de 2013

Mercado inclina, na Beira

Em tons laranja papaia e amarelo ananás, com os acastanhados das maçanicas, que cobrem as maçaniqueiras, o sol, deu-me o acordar do dia com um convite:
-hoje vamos fazer compras a África. Naquela profunda!
-Gostas de fazer compras?
-Hum, retorqui, nem por isso…a não ser frutas, aí perco-me.
Perdi ao longo dos anos o gosto que nunca foi verdadeiramente nascido em mim, por hipermercados. Prefiro mercearias onde converso com toda a gente e escolho o feijão,o milho, as mangas e as verduras, enquanto a vida se desenrola sem pressa.
-Gostas de inclinar?
-Inclinar?
De mente aberta esperei a resposta,não pensando em nada,já que me habituei em África, a andar despida de expectativas mas coberta por surpresas de cores quentes.
Esperar sempre sim, que o dia a dia me traga muitas novidades.E este dia trazia também.
-Vamos à boutique inclina! A maior boutique a céu aberto da Beira.
-O quê? Mas claro que sim! onde fica esse lugar?
-É já ali (como dizem os alentejanos). Prepara-te para andar um bom bocado!
Ou seja, exactamente o que eu gosto. Preparei a minha mochila e fui imediatamente advertida:
-hey rapariga, só podes levar chapéu e dinheiro no soutien. Nem telemóveis, nem carteiras. Ri-me, coloquei um lenço colorido na cabeça, as minhas calças tailandesas confortáveis, chinelas, uma malinha na cintura e parti para mais uma aventura africana… na África real.
E em menos de 10 minutos estava em Goto, nome mais conhecido do mercado. Tchungamoyo, em dialecto ndau, traduz-se por “aperta o coração”. Mercado paralelo, onde toda a gente comprava, antes de existir qualquer outro. Uma necessidade inerente à existência, em tempos de guerra. Quem lá conseguia vender, fazia “apertar o coração” a quem comprava, por pouco ter.
Tal como em Maputo, dumba-nengue, em ronga, significa “confia nas pernas”, porque alguém podia ter de fugir com as compras fresquinhas, perseguido pelas autoridades policiais.
Ali estava eu, metida no meio de centenas de bancas cobertas com plástico, num terreno enlameado, porque tinha chovido de noite, numa autêntica cidade, com mil ruelas, e fardos, fardos, fardos. Fardos de calamidades como são chamados.
Roupas usadas, novas, sapatos, mochilas, vestidos de noivas, capulanas, tachos, panelas, casas de câmbios, entre mil outras actividades económicas. Tudo no chão, em cima de plásticos com pilhas de roupa. 
Nem todos os sapatos têm par, e, pode acontecer levar um “sábado e um domingo”. Ou seja, um sapato de cada nação. Por isso o par fica mais barato.
Algumas mais sofisticadas têm as peças penduradas em ramos cortados das árvores a fazer de cabides. A criatividade não tem limites.
Há fardos de 5,10,20,25 meticais (tudo menos de 1 euro) e outros de preço variável…são os fardos que dá para negociar ainda mais. As jeans mais caras que comprei,custaram-me €1,25…Fiz várias compras aos meus “bradas” e no total gastei €5,00…só não consegui comprar sapatos por puro burguesismo…são lavados ali mesmo, para ficarem com aspecto reluzente(mas não conseguem).
Ah… também não comprei cabelos de mulheres mortas, porque achei que seria demais,ter uma brada a vir do outro mundo, puxar-me o pé à noite e desmanchar-me a trança, só para me chatear. Seria natural sentir-se ofendida…
Descobri uma banca de um brada, de artesanato, com coisas girissimas. Prometo que lá irei fazer as compras para levar aos meus bradas na lusolândia.
Toda a gente que viveu,foi de férias ou em negócios, já foi a estes mercados gigantes. Roque Santeiro em Luanda, Sucupira na Praia, Bandim em Bissau, ou os dumba-nengues em Maputo como o Xipamanine. Em qualquer Palop e não só. 
O mundo económico e real, africano, em África. Todos se tratam por bradas e com as peles mais claras o preço começa sempre por cima. Negociar é a palavra de ordem.
Discuti preços (obrigatório), ri-me, inclinei-me muitas vezes, descobri as coisas que acabei por ter vontade de comprar, perdi a paciência de ver tanta roupa, cansei-me, sentei-me numa banca a comer tangerinas dulcissimas e a conversar com os vendedores. 
Mas no fim, cansada de andar debaixo do sol que já não perdoava os fracos, estava feliz e com um sorriso de orelha a orelha, naquele hipermercado, onde até andam “tchopelas” (os táxis- que são riquexós motorizados) e por sorte não leva fardos de roupa e fardos de gente à frente.
Ouvi um dos vendedores a pedir em casamento uma miuda linda,dizendo-lhe que era pobre,mas tinha um tchopela para lhe oferecer… a miuda recusou. Já era comprometida com um noivo que lhe prometeu um jeep.
Já no regresso vi uma mochila que me agradou e fui tentar saber quanto, com sotaque . O vendedor tinha ido a qualquer sitio e recebi como resposta do vendedor do lado: 
-“ ei, vucê…se me deres refresco,levas a mochila e eu não conto a ninguém” J
Num país que decididamente olha para a perspectiva de nova guerra entre bradas com a maior suspeição, porque não a aceita, e, apenas quer que a vida continue, nem que seja no meio de fardos/calamidades, até que chegue um novo dia, onde possam ter uma boutique a sério, vim para casa a sorrir.

Contente, de faces rosadas, sem mochila mas com boas compras da boutique inclina J, com a cintura mais elegante de tanto inclinar.

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