Em tons laranja papaia e amarelo ananás, com os acastanhados das
maçanicas, que cobrem as maçaniqueiras, o sol, deu-me o acordar do dia com um
convite:
-hoje vamos fazer compras a África. Naquela profunda!
-Gostas de fazer compras?
-Hum, retorqui, nem por isso…a não ser frutas, aí perco-me.
Perdi ao longo dos anos o gosto que nunca foi verdadeiramente nascido
em mim, por hipermercados. Prefiro mercearias onde converso com toda a gente e
escolho o feijão,o milho, as mangas e as verduras, enquanto a vida se desenrola
sem pressa.
-Gostas de inclinar?
-Inclinar?
De mente aberta esperei a resposta,não pensando em nada,já que me
habituei em África, a andar despida de expectativas mas coberta por surpresas de cores quentes.
Esperar sempre sim, que o dia a dia me traga muitas
novidades.E este dia trazia também.
-Vamos à boutique inclina! A maior boutique a céu aberto da Beira.
-O quê? Mas claro que sim! onde fica esse lugar?
-É já ali (como dizem os alentejanos). Prepara-te para andar um bom
bocado!
Ou seja, exactamente o que eu gosto. Preparei a minha mochila e
fui imediatamente advertida:
-hey rapariga, só podes levar chapéu e dinheiro no soutien. Nem
telemóveis, nem carteiras. Ri-me, coloquei um lenço colorido na cabeça, as
minhas calças tailandesas confortáveis, chinelas, uma malinha na cintura e
parti para mais uma aventura africana… na África real.
E em menos de 10 minutos estava em Goto, nome mais conhecido do
mercado. Tchungamoyo, em dialecto ndau, traduz-se por “aperta o coração”.
Mercado paralelo, onde toda a gente comprava, antes de existir qualquer outro.
Uma necessidade inerente à existência, em tempos de guerra. Quem lá conseguia
vender, fazia “apertar o coração” a quem comprava, por pouco ter.
Tal como em Maputo, dumba-nengue, em ronga, significa “confia nas
pernas”, porque alguém podia ter de fugir com as compras fresquinhas, perseguido
pelas autoridades policiais.
Ali estava eu, metida no
meio de centenas de bancas cobertas com plástico, num terreno enlameado, porque
tinha chovido de noite, numa autêntica cidade, com mil ruelas, e fardos, fardos,
fardos. Fardos de calamidades como são chamados.
Roupas usadas, novas, sapatos, mochilas, vestidos de noivas,
capulanas, tachos, panelas, casas de câmbios, entre mil outras actividades
económicas. Tudo no chão, em cima de plásticos com pilhas de roupa.
Nem todos
os sapatos têm par, e, pode acontecer levar um “sábado e um domingo”. Ou seja,
um sapato de cada nação. Por isso o par fica mais barato.
Algumas mais sofisticadas têm as peças penduradas em ramos cortados
das árvores a fazer de cabides. A criatividade não tem limites.
Há fardos de 5,10,20,25 meticais (tudo menos de 1 euro) e outros
de preço variável…são os fardos que dá para negociar ainda mais. As jeans mais
caras que comprei,custaram-me €1,25…Fiz várias compras aos meus “bradas” e no
total gastei €5,00…só não consegui comprar sapatos por puro burguesismo…são
lavados ali mesmo, para ficarem com aspecto reluzente(mas não conseguem).
Ah… também não comprei cabelos de mulheres mortas, porque achei
que seria demais,ter uma brada a vir do outro mundo, puxar-me o pé à noite e
desmanchar-me a trança, só para me chatear. Seria natural sentir-se ofendida…
Descobri uma banca de um brada, de artesanato, com coisas
girissimas. Prometo que lá irei fazer as compras para levar aos meus bradas na
lusolândia.
Toda a gente que viveu,foi de férias ou em negócios, já foi a
estes mercados gigantes. Roque Santeiro em Luanda, Sucupira na Praia, Bandim em
Bissau, ou os dumba-nengues em Maputo como o Xipamanine. Em qualquer Palop e
não só.
O mundo económico e real, africano, em África. Todos se tratam por
bradas e com as peles mais claras o preço começa sempre por cima. Negociar é a palavra de ordem.
Discuti preços (obrigatório), ri-me, inclinei-me muitas vezes, descobri
as coisas que acabei por ter vontade de comprar, perdi a paciência de ver tanta
roupa, cansei-me, sentei-me numa banca a comer tangerinas dulcissimas e a
conversar com os vendedores.
Mas no fim, cansada de andar debaixo do sol que já
não perdoava os fracos, estava feliz e com um sorriso de orelha a orelha, naquele hipermercado, onde até andam “tchopelas” (os táxis- que são riquexós
motorizados) e por sorte não leva fardos de roupa e fardos de gente à frente.
Ouvi um dos vendedores a pedir em casamento uma miuda
linda,dizendo-lhe que era pobre,mas tinha um tchopela para lhe oferecer… a
miuda recusou. Já era comprometida com um noivo que lhe prometeu um jeep.
Já no regresso vi uma mochila que me agradou e fui tentar saber
quanto, com sotaque . O vendedor tinha ido a qualquer sitio e recebi como
resposta do vendedor do lado:
-“ ei, vucê…se me deres refresco,levas a mochila e
eu não conto a ninguém” J
Num país que decididamente olha para a perspectiva de nova guerra
entre bradas com a maior suspeição, porque não a aceita, e, apenas quer que a
vida continue, nem que seja no meio de fardos/calamidades, até que chegue um
novo dia, onde possam ter uma boutique a sério, vim para casa a sorrir.
Contente, de faces rosadas, sem mochila mas com boas compras da
boutique inclina J, com a cintura mais
elegante de tanto inclinar.
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